Planeta Educação – Jornal do Morhan, n° 20, 2° trim. 1993. In: CaminheConosco/Cartilha do Morhan, 1993, p. 4-7.08/09/2009Texto de Francisco Augusto Vieira Nunes sobre a hanseníaseNós, pessoas humanas, somos o que de mais valioso e perfeito existe naTerra e, até mesmo, em todo o universo que conhecemos. Somos capazes deandar, de falar, de cantar, de pensar, de amar… e de tantas outrascoisas maravilhosas, sem que seja preciso usar pilhas ou computador. Etodos esses predicados são encontrados tanto no rico quanto no pobre; nomilionário, quanto no mendigo; no nosso filho e no menino que vive narua. Nada se compara em valor, em beleza, em complexidade, em perfeiçãocom o bêbado que dorme debaixo de jornais nos bancos da praça. Nem nossocarro, nem a nossa casa, nem a nossa obra de arte, nem a nossa contabancária… a não ser nós mesmos.Por outro lado, nós, pessoas humanas, somos ao mesmo tempo um serfísico, um ser social, um ser psicológico, um ser cultural. Cada umadessas dimensões complementa a outra, e a vida de cada uma é alimentadapelas demais. O que atinge a uma, afeta a todos. Perder uma perna, porexemplo, não afeta apenas a dimensão física. Na “cultura” do perfeito,seguindo-se padrões estabelecidos, a vida social de uma pessoa de umaperna só tem barreiras que são quase intransponíveis: na dança, noesporte, no simples caminhar num parque. O impacto psicológico, então,é ainda mais difícil de ser absorvido. Culturalmente, a pessoa passa aser vista e tratada de forma diferente e até ganha um novo nome:”perneta”. Nosso referencial passa a ser a nossa deficiência física:”Aquele doutor que tem só uma perna…”, por exemplo. Dependendo dasituação, ora somos tratados com preconceito, ora com piedade; outrasvezes, com a constante exigência deautossuperação para sermos aceitos como normais etc.Um outro aspecto é que podemos perder um dedo, um braço, a mão, um pé,de várias formas: acidentes, guerras, brigas corporais, doenças etc.Curioso é que essas causas de lesões podem ser mais ou menos danosas àsoutras “partes”: perder um dedo da mão numa guerra, por exemplo, podetrazer orgulho; mas se for por causa de hanseníase, marginaliza. Apertara mão que perdeu um dedo numa guerra é uma coisa; apertar a mão queperdeu um dedo por causa de uma doença contagiosa é outra. A mão de um”guerreiro” é diferente da mão de um “leproso”, mesmo que o traumafísico seja igual.Algumas dessas agressões físicas atingem tanto as outras dimensões que,em alguns casos, acrescentam mais danos a estas. Assim sendo, contrair ahanseníase, por exemplo, não é apenas – mesmo que afirmemos ocontrário – contrair uma doença que agride os nossos nervosperiféricos; mas, “contraímos” também uma nova identidade que, nãoraro, é muito pior que a doença em si: essa alteração de identidadenão tem cura. Ser tuberculoso, ser hanseniano ou leproso, ser aidéticoé, com certeza, muito pior que estar com tuberculose, com hanseníase oucom Aids. Quando se diz: “Fulano é leproso”, está se atribuindo a ele umestado permanente – ele é. Não se compara com: “Fulano está comhanseníase”, a quem se atribui um estado passageiro – ele está. Essasidentidades cujos cartórios de registro são, muitas vezes, o próprioconsultório médico ou os eventos técnicos de saúde, não atingemapenas a nossa parte física, é claro, mas atotalidade do nosso ser.Diante do exposto, concluímos que o tratamento de uma pessoa que ESTÁCOM HANSENIASE, não pode ser resumido numa simples caça ao bacilo deHansen. Nunca podemos esquecer, mesmo que seja pelos mais nobres motivos,que o bacilo de Hansen não é mais importante que seu habitat. Mesmo quenão possamos colher rosas, sem de alguma forma mutilar a roseira, não éinteligente matar uma mosca pousada em alguém com um tiro de revólver.Passei 21 anos da minha vida internado em três hospitais-colônias empontos do Brasil: Rondônia, Acre, São Paulo. Conheci e conheço dezenasde técnicos em saúde. Com raras e ricas exceções, fiquei com aimpressão de que esses profissionais, há alguns anos, dividiam a pessoacom hanseníase em três partes: bacilos, bacilos e bacilos. Era muitodifícil sermos procurados, a não ser para pesquisarem se ainda tínhamoso “precioso bichinho”, como “viveiro” de alguma coisa mais importante doque nós. Para eles, não tínhamos olhos, nem ouvidos, nem cérebro, nemcoração… (quantas coisas ouvi e compreendi; mesmo que achassem que eunão era capaz disso!). Mas eles, graças a Deus, evoluíram: com o tempocomeçaram a nos dividir em: bacilos, pés, mãos. Passando mais uns anose, pela ajuda de poucos (pouquíssimos), deram um novo passo: bacilos,pés, mãos e olhos (ufa! chegaram aos olhos), até hoje, não evoluírammais… Nas áreaspsicossociais, tenho de reverenciar pessoas pela sua luta, pelo seusonho, pelo seu “querer fazer alguma coisa”, mesmo “remando contra amaré”.Cada um de nós, com certeza, tem algo de que gosta muito: um móvelantigo, um livro, um quadro (não importa de que autor) etc. Vamos suporque a nossa “paixão” seja um quadro. Certo dia, olharmos para ele e vemosque está sendo atacado por cupins. Já tem até uma parte estragada. Oque fazemos? Simplesmente jogamos inseticida para matá-los? Ficar apenasfestejando sua destruição? Achar que já cumprimos o nosso dever? Claroque não. Vamos acabar com os insetos, sim, mas de forma que nãodanifique ainda mais o quadro. E depois? Depois, com certeza, vamos fazertodo o esforço para achar alguém que o recupere. Um técnico competentee, naturalmente, que goste e conheça o valor do seu trabalho e aqualidade da tela.Ora, como já enfatizamos, somos infinitamente mais valiosos do quequalquer obra de arte. E muito mais complexos, como também já falamos.Por isso, achamos que qualquer programa de combate à hanseníase a serimplantado, que não busque a cura do doente como um todo, será apenasuma “dedetização”. O combate à hanseníase deve ser acompanhado pelacura do doente, pela restauração completa da obra. É admirável como aspessoas que nos atendem menosprezam o nosso cérebro. Sempre confundemfalta de escolaridade com “burrice”. Por falar nisso, acho que o doenteprecisa participar de forma ativa do seu tratamento. Ele deve fazer partede forma consciente da equipe que o trata. Seu cérebro deve ser usado!Afinal, a ele cabem as tarefas mais importantes para sua cura. Vejamos:tomar o remédio; se não tomá-lo – não importa que o medicamento e oresto da