‘Parecia campo de concentração’ Por Carolina Garcia – iG São Paulo | 09/12/2014 15:41 – Atualizada às 09/12/2014 16:47 Internamento de portadores de hanseníase em colônias era lei até os anos 80. Filhos eram enviados em cestos a educandários Como uma espécie de caça às bruxas, o Brasil viveu entre as décadas de 30 e 80 um período de controle da hanseníase, doença popularmente conhecida como lepra, e obrigava todos os seus portadores a viverem em um dos 37 hospitais-colônias, longe das famílias. O contato com filhos e futuros filhos também era proibido por uma lei federal de 1949. Periodicamente, novas “ninhadas de filhos de leprosos” eram enviadas em cestos aos educandários ou preventórios, espécie de creche aos órfãos de pais vivos. A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência (SDH/PR) estima que pelo menos 40 mil bebês foram separados dos pais no século passado. Entre as crianças, estava José Irineu Ferreira que – hoje aos 65 anos – ainda carrega marcas psicológicas do que enfrentou. O aposentado nasceu no hospital-colônia Dr. Pedro Fontes, na cidade de Cariacica (ES). José é fruto do relacionamento de Osvaldo e Terezinha, diagnosticados com hanseníase e internados desde os 15 anos. O casal viveu sob o regime da lei federal (lei nº 610) de 13 de janeiro de 1949, que determinava “que todo recém-nascido, filho de doente de lepra, será compulsória e imediatamente afastado da convivência dos pais”. O isolamento das pessoas portadoras da doença seguiu até o ano de 1986. Ferreira foi separado de sua mãe imediatamente após o parto e levado ao educandário Alzira Bley. Ali passou toda sua adolescência, entre uma “surra e outra” e trabalho forçado nas áreas rurais. Ele deixou o local com 19 anos, sem laços sociais e sem os dois irmãos, que não sobreviveram sem leite materno. Arquivo pessoal Jovem José Irineu Ferreira, com 22 anos Duas vezes por ano, Ferreira visitava os pais por “rápidos minutos”. O parlatório, espaço destinado aos encontros, separava pais e filhos por um vidro grosso. Havia temor de contágio. Com o avanço da medicina e esclarecimento sobre a hanseníase, o local sofreu modificações e passou a separar os internos e filhos por uma grade de proteção. “Parecia um campo de concentração. No colo de uma das guardas, fui apresentado aos meus pais. Elas falavam: ‘Ó, esse é seu pai. Aquela é sua mãe’. Mas a gente virava a cara porque não entendia o significado dessa palavra.” Ferreira conseguiu encontrar a mãe Terezinha, hoje com 85 anos, que ainda mora na colônia Dr. Pedro Fontes. Desde 1986, os portões já não são trancados com cadeados. Mas a idosa não quer deixar a colônia, explica o filho. “Ela foi praticamente criada lá. Não consegue sair. Quando posso, visito. Mas a gente não tem nenhum vínculo amoroso. Eu a conheço como minha mãe, mas não fui criado por ela.” Referência biológica A assistente social Maria Teresa da Silva Oliveira, de 58 anos, também foi colocada nos cestos das novas ninhadas após nascer na colônia Santo Ângelo, em Mogi das Cruzes (SP). A passagem pelo educandário foi breve, após quatro meses ela foi adotada por uma família. Na adolescência recebeu dos pais afetivos a notícia de que havia sido adotada quando pequena. Apenas em 2002, porém, descobriu os detalhes da adoção e sua história com a hanseníase. Maria é a idealizadora da Hansenpontocom, que integra o iGual, espaço do iG destinado a comunidades e a dar voz aos cidadãos. Há ainda a REDHansen, que incentiva o debate sobre a doença no mundo virtual. “Fui adotada após um anúncio na TV, em um programa de Natal. Era um anúncio de crianças abandonadas. Quase enlouqueci com a notícia e o peso do preconceito da doença. Sou sadia, mas levei três anos para aceitar a minha história”, conta a assistente social, que lutou para compreender sua origem e encontrar outros “filhos separados” pelo País. Batizada originalmente como Maura Regina, Teresa conseguiu encontrar a ficha da mãe Maria José Amélia, descobriu a existência de duas irmãs, e teve acesso às cartas, que indicavam a incessante busca da mãe por informação das filhas, adotadas por diferentes famílias. A história de Teresa motivou o Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan) a criar um banco de dados nacional com as vítimas. Com a proximidade dos sobrenomes e mesmo nome da mãe, as irmãs de Teresa foram encontradas na região de São Paulo. Após cinco anos da descoberta, o trio ainda tenta reestabelecer o vínculo. Teresa explica a dificuldade: “Viemos de criações diferentes. Percebo as semelhanças físicas e de personalidade, mas a gente ainda não conseguiu unir as nossas vidas. O que foi quebrado lá atrás foi quebrado para sempre.” Apesar das dificuldades, a assistente social reconhece a importância do reencontro. Para ela, todos precisam descobrir a própria origem. “Precisava de uma referência biológica, me olhar no espelho e entender a minha existência. É importante para qualquer um”, diz ela, ressaltando a emoção que sentiu ao comparar o seu cabelo enrolado com o sobrinho. A abertura dos portões dos hospitais colônias e educandários revelou uma população que cresceu marginalizada e sem laços familiares. Essa parcela busca uma reparação e reconhecimento do governo brasileiro. “Além de reencontrar familiares, nossa necessidade é uma indenização. O Estado precisa reconhecer o seu erro e o que fez com milhares de famílias”, conclui Teresa. Indenização incompleta Desde 2007, ex-pacientes dos hospitais-colônia recebem uma pensão vitalícia do governo no valor de dois salários mínimos. No entanto, segundo especialistas, a ação foi incompleta já que poderia ser estendido também aos filhos. “A mesma política que ocasionou e manteve o isolamento compulsório [dos portadores de hanseníase], gerando o crime de Estado, também ordenou a separação dos filhos. Após a indenização dos pais, abrimos a discussão”, explica o coordenador nacional do Morhan, Artur Custódio. A ação do governo para os filhos separados deve ser rápida, prega o coordenador, por conta da idade avançada dos atingidos sejae há alto índice de mortalidade. Estima-se que a faixa etária do grupo esteja entre 50 e 80 anos. É preciso ainda, diz