Fonte: Itamar Meloitamar.melo@zerohora.com.brDos mil moradores do passado, restam 34, todos idosos, na cidade a 60 quilômetros do centro de Porto Alegre. Circulam por ruas e praças quase desertas. Grande parte dos 172 prédios está abandonada. O Centro de Diversões, construção colossal que acolhia bailes e sessões de cinema, agora raramente abre as portas.A história dessa misteriosa e agonizante comunidade — o Hospital Colônia Itapuã — tornou-se mais conhecida com o documentário A Cidade, que revela o cotidiano de 10 dos últimos moradores. Essas pessoas chegaram ali como prisioneiros. Eram pacientes de hanseníase, doença antes conhecida como lepra e tratada em confinamento.Eva Pereira Nunes, 67 anos, vive há mais de meio século no antigo hospital, nos confins de Viamão, à margem da Lagoa Negra. Veio de um internato em Santo Antônio da Patrulha. Tinha 12 anos. Na caminhonete onde foi enfiada, a enfermeira tentava acalmá-la:— Não chora, guriazinha. Tu vais para um lugar muito bom.O lugar era mesmo bom. Inaugurado em 1940 para isolar os doentes, contava até com moeda própria, cunhada em alumínio e com circulação restrita à colônia — uma tentativa de evitar contágios. O sustento era garantido pela lavoura e criação de gado.Lá dentro, além de trabalharem, os pacientes iam à escola, divertiam-se, casavam-se. Também acabavam em uma cela, cumprindo pena de 10 dias, quando surpreendidos em tentativa de fuga. Eva fugiu várias vezes. Depois, sem ter para onde ir, voltava. No início, viveu em um quarto, no pavilhão coletivo. Trabalhou na lavanderia, no refeitório e na coleta de lixo.Aos 17 anos, casou-se com outro paciente, Darcy, 27 anos, na igreja católica do hospital. O matrimônio garantiu o direito de se mudar para uma das casas reservadas aos casais. Decidiu não ter filhos. As crianças que nasciam na colônia eram retiradas das mães após o parto e enviadas para o Amparo Santa Cruz, instituição a 40 quilômetros dali.— Eles eram arrancados da mãe como se fossem bichos — recorda Eva.Preconceito barrava o retorno para casaUma das poucas crianças que cresceram no local foi Paulo Roberto Goulart, 56 anos. Filho de um servidor do hospital, vivia na chamada “área limpa”, fora dos muros. Dentro ficava a “área suja”, a cidade dos hansenianos. Nas quartas à noite, Paulo entrava para acompanhar a sessão de cinema. Entre suas lembranças estão as visitas dos filhos dos doentes:— O ônibus do Amparo vinha uma vez por mês. De dentro, a freira levantava a criança e mostrava pelo vidro: “olha, esse é o teu filho”.Nos anos 70, quando se disseminaram os medicamentos contra o Mal de Hansen e caíram concepções equivocadas sobre o contágio, as portas do hospital foram abertas. A maioria dos pacientes foi embora — mas parte deparou com o preconceito e logo retornou. Por ter confinado os pacientes, o poder público se comprometeu a manter os hospitais-colônia enquanto houvesse moradores.Em 1990, os antigos doentes de Itapuã eram cerca de 150. Uma década depois, as mortes haviam reduzido a população pela metade. Eva está entre os que nunca saíram:— Ir para onde? Até a família tinha medo. Todos aqui têm um sentimento dividido em relação ao hospital.Viúva, ela mora sozinha. Tem direito a um benefício mensal, rancho, remédios, não paga luz, água ou aluguel. Eva vê com tristeza sua cidade definhar. O pouco de agitação é por causa dos 54 doentes do Hospital São Pedro levados para dar uso à estrutura. Dias atrás, apareceu a primeira-dama do Estado, Sandra Genro. Eva ficou admirada de ela ter pedido água. Em geral, vê evitarem o contato.— O lugar ficou triste. A verdade é que o hospital está pendurado por nós. Quando terminarem os pacientes, isso aqui acaba.