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A partir desta sexta-feira (02/10), terá início no Supremo Tribunal Federal uma sessão de julgamento que, dentre muitos processos, analisará um em especial que trata sobre um pedido de indenização contra o Estado brasileiro feito por uma mulher que, quando criança, foi separada dos seus pais por causa da política de isolamento da hanseníase. O STF analisará se essa pessoa tem direito a uma indenização por ter sido separada dos seus pais doentes ou se essa pretensão já estaria prescrita.
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A discussão colocada no STF é a linha que o Superior Tribunal de Justiça tem adotado ao declarar a prescrição de pedidos de reparação às graves violações a direitos humanos decorrentes de uma prática que marcou a política pública para a hanseníase que vigorou no Brasil entre 31 de dezembro de 1923 a 31 de dezembro de 1986. E que prática foi essa? A separação de filhos das pessoas atingidas pela hanseníase.
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É importante considerar que essa separação aconteceu no âmbito de outra prática que marcou essa política, que foi a internação e o isolamento compulsório de pessoas atingidas pela hanseníase que, nos termos da legislação da época, mesmo sendo uma doença curável, permitia a internação, em verdadeiros campos de concentração, de pessoas doentes e também de pessoas já curadas que tinham ficado com o que a lei 610/1949 chamava de “estigmas impressionantes da lepra”, ou seja, lesões no corpo.
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Artur Custódio, coordenador nacional do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (MORHAN), explica que o Estado brasileiro já reconheceu que a política de isolamento compulsório de pessoas atingidas pela hanseníase foi um equívoco e paga uma indenização vitalícia a essas vítimas pela Lei 11.520/2007. Pedro Pulzatto Peruzzo, advogado voluntário do MORHAN, explica que essas práticas (internações compulsórias e separação de filhos dos seus pais) foram responsáveis por graves violações a direitos humanos que geraram danos de difícil reparação, como desaparecimentos forçados (pais que, ainda hoje, não sabem o paradeiros dos filhos e filhos que não sabem o paradeiro dos pais), tortura de todo tipo e com todo tipo de consequência, como lesões permanentes que, em interação com as barreiras sociais, configuram deficiência; traumas decorrentes de abusos sexuais; maus tratos (pessoas que carregam cicatrizes pelo corpo, crânio com lesões), traumas psicológicos, além do preconceito e estigma que ainda hoje permanecem arraigados na sociedade no segundo país com maior número de diagnóstico de hanseníase no mundo.
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No documentário “Filhos separados pela Injustiça”, é possível assistir a depoimentos de um grupo de pessoas que, quando crianças, tiveram os tímpanos estourados pelos castigos sofridos nos educandários após a separação dos seus pais. Também neste documentário uma filha separada relata o seguinte: “Em primeiro lugar, fui afastada da minha mãe; eles me colocaram lá desde que eu era um bebê. Até então, não tinha conhecimento do sofrimento. Eles tentaram colocar uma sapataria lá para os meninos aprenderem alguma coisa. Eu era uma menina muito doce e carente e fui visitar aquela sapataria. Aí o sapateiro disse que eu era uma menina bonitinha e então ele seria meu pai, o que me emocionou porque eu sentia muita falta dos meus pais. O sapateiro então me fez sentar no colo dele e começou a apalpar meus seios, nem tinha peito direito, eu tinha sete anos. Quando senti que algo estranho estava acontecendo, ele me disse para ficar quieta, pois me daria amor e carinho e me fez cheirar cola de sapato, o que me deixou tonta. Então o fato aconteceu. Ele disse que me usaria e que eu não ia contar nada para ninguém. Ele me estuprou. Ele me usou dos dois lados. Qualquer parte que ele pudesse usar de mim, ele usava”.
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Os bebês separados de suas mães, chegavam aos preventórios dentro de cestas de vime e eram rotulados como “ninhada de leprosos”. Os preventórios eram verdadeiros abrigos dos órfãos de mães vivas, que na realidade eram desconsideradas e apagadas da sociedade pelo fato de terem hanseníase. O livro “A Praga”, de Manuela Castro, relata a história da hanseníase nas colônias do Brasil e exemplifica por meio de depoimentos de mães que tiveram seus filhos arrancados o sofrimento dessa ruptura brutal dos laços familiares.
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Também o livro intitulado O Holocausto Brasileiro, de Daniela Arbex, demonstra as graves violações praticadas dentro dessas instituições totais que também recebiam outros grupos, como moradores de rua e pessoa com deficiência. O advogado voluntário do MORHAN, Thiago Flores, afirma que essa foi a maior política de alienação parental praticada pelo Estado brasileiro.
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Esse registro também consta do Relatório apresentado em julho de 2020 pela Relatora Especial da ONU para a Eliminação da Discriminação contra as Pessoas Afetadas pela Hanseníase e seus Familiares sobre o Brasil: Essas crianças cresceram sem nenhum contato com seus pais biológicos e muitas delas sofreram encarceramentos, tratamentos desumanos e tortura nos preventórios, como trabalho forçado, abuso sexual e outras formas de violência física e psicológica. Como resultado dessas violações, muitas dessas pessoas não têm acesso hoje a um padrão adequado de vida e autonomia econômica, e muitas sofrem de distúrbios e deficiências psicossociais que prejudicam sua reabilitação e inclusão na sociedade.
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Ou seja, o que está em questão é uma política pública do Estado brasileiro que torturou, estuprou, desapareceu e, muito possivelmente, matou crianças que nasceram de mães e pais atingidos pela hanseníase. O advogado voluntário o MORHAN que assina os pedidos de ingresso como amicus curiae nos processos que tramitam no STF e STJ, Carlos Nicodemos, explica que a declaração de prescrição nesses processos individuais desconsidera que estivemos diante de uma política de Estado e que o estado de vulnerabilidade das vítimas, ou seja, a dificuldade de acessar a Justiça, precisa ser considerado no momento de definir a questão da prescrição.
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O MORHAN e a Defensoria Pública da União ingressaram na Justiça Federal com ações civis públicas (ação de natureza coletiva) para tentar obter uma sentença que obrigue o Estado brasileiro a realizar uma política de reparação integral a esses filhos separados. Apesar das ações coletivas, muitos filhos separados decidiram buscar sozinhos no Judiciário o direito a uma indenização em dinheiro. Ocorre que um desses casos está na mesa do Ministro Luis Roberto Barroso com uma tese que sustenta que o pedido já estaria prescrito, ou seja, que já teria passado o prazo legal para pedir em juízo essa reparação.
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O Defensor Público da União que atua nesse caso individual no STF, Gustavo Zortea, explica que a DPU pediu pro STF colocar para votação plenária a questão da prescrição como matéria referente ao “acesso à Justiça”, direito previsto na Constituição. No entanto, o Ministro Luis Roberto Barroso está entendendo, na linha do que o Ministro Dias Toffoli decidiu em outro processo semelhante, que a questão da prescrição é matéria infraconstitucional e, por isso, não deve ser julgada pelo STF com a referida repercussão geral, que asseguraria um efetivo processo de justiça de transição diante dessa violação sistemática a direitos humanos. Ou seja, caso o STF julgue prescrita a pretensão desse filho separado, ao menos 16.000 filhos verão suas histórias e sofrimento jogados para debaixo do tapete da história.
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Via Redação Justificando