Aos 102 anos, Seu Zé venceu a hanseníase e tem fé na vida

Aos 102 anos, Seu Zé venceu a hanseníase e tem fé na vida

“Oi vô! Oi Seu Zé!” É assim que as pessoas cumprimentam o mais antigo paciente do Hospital São Julião. José Garcia da Cruz, de 102 anos, é dono da segunda ficha de internação do Hospital São Julião, na saída para Cuiabá, em Campo Grande, inaugurado em 1941 para atender os pacientes com hanseníase. Natural de Corumbá, ele que na juventude trabalhou de faxineiro, carpinteiro e varredor de rua, será o primeiro brasileiro a receber indenização no valor de R$ 750 do governo pela violação de direitos que sofreu ao ser internado a força. A pensão vitalícia de Seu Zé se comparada com as dos ex-governadores de Mato Grosso do Sul é 29 vezes inferior. Os ex-mandatários recebem R$ 22 mil. Seu Zé passa o dia caminhando apoiado numa cadeira de rodas pela área de 240 hectares completamente arborizada do hospital. Com lucidez, o centenário diz que foi desprezado pela família numa época em que a lepra (como era chamada a hanseníase) era incurável e as internações eram compulsórias, uma determinação do governo de Vargas. Na década de 80 a medicina avançou no tratamento. Discriminação Com problemas na fala, traço desde sua chegada, segundo os mais antigos, Seu Zé conseguiu se expressar e contar um pouca de sua trajetória ao jornal eletrônico Midiamax. “Os outros tinham medo de mim. Morei sozinho na Cabeça de Boi (*). Fui faxineiro, carpinteiro e varredor de rua. Pare de trabalhar por causa dessa porcaria”, diz. Ele refere-se à hanseníase que comprometeu os movimentos das mãos e braços. A história de Seu Zé é uma amostra do que os brasileiros vítimas da hanseníase sofreram no passado. O padrasto, a mãe e até a namorada dele lhe viraram as costas, relata. “Meu padrasto me expulsou, minha mãe também. Quem me via fechava as portas”. Força pra viver Mas, o segundo paciente do São Julião acabou permanecendo no hospital e hoje é um dos mais populares do local. Injustiça? Descaso? A memória de Seu Zé não consegue expressar a revolta por passar a vida lá. Ao contrário, ele demonstra um apego ao lugar. “Trabalhei muito aqui. O único lugar que eu achei bom para viver é aqui”, diz. A assistente social Érica Maddalena, 43 anos, trabalha há 20 no Hospital São Julião. Segundo ela, Seu Zé impressiona e dá lição de humildade e resignação. “É muita humildade apesar de tudo. Tem espírito bondoso, não há revolta. Conseguiu superar a discriminação e tem muita fé. Seu Zé é dono de um espírito forte. Não são todos que não se entregam e são alegres como ele”. “Hoje sonhei com meu irmão”. Essa foi a única frase que mostrou a lacuna deixada pelo tempo em sua memória. O irmão dele já é falecido e a cunhada é a única visitante da família do Seu Zé. A assistente social diz que o salário mínimo pago a ele pela Previdência Social fica com a cunhada que também deverá receber a pensão vitalícia de Seu Zé. Indagado sobre o benefício nessa altura da vida, ele demonstrou desapego e desinteresse no assunto. E mesmo com dificuldade para se expressar pela fala, Seu Zé sorri, demonstra alegria pela visita da reportagem, mostra que pode caminhar sem se apoiar na cadeira de rodas, o que preocupa a assistente social. Seu Zé tira o boné como forma de respeito e acena a despedida. Mea-culpa Como o benefício às vítimas de hanseníase que passaram suas vidas confinadas em hospitais é retroativo a maio deste ano, data em que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou decreto instituindo a pensão, Seu Zé, a exempl