No dia 27 de junho, as pessoas atingidas pela hanseníase no Brasil estavam celebrando um feito: pela primeira vez, um brasileiro que já teve a doença foi ouvido na Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os desafios para a superação da doença no país, que tem no preconceito e na desinformação seus maiores obstáculos. O que não imaginávamos é que, no mesmo dia, testemunharíamos mais um exemplo seríssimo desses dois males: um vídeo do grupo Porta dos Fundos, chamado “Viajando”, que reproduz estereótipos e ideias equivocadas que sustentam o estigma que cerca a doença na nossa sociedade.
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Ao sabermos do fato por pessoas atingidas pela hanseníase revoltadas com o conteúdo, entramos imediatamente em contato com a assessoria de comunicação do Porta dos Fundos, explicando os problemas do vídeo e solicitando a produção de um conteúdo que esclarecesse questões sobre a hanseníase. Fizemos este primeiro movimento abrindo a possibilidade de correção do erro e de sensibilização para um problema que atinge milhares de brasileiros de forma muito brutal. Mas, infelizmente, o retorno que tivemos foi de que o Porta dos Fundos não se pronunciaria sobre o assunto.
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Cabe lembrar que o vídeo foi produzido como merchandising da empresa Ciclic, que também deve ser responsabilizada pela aprovação da veiculação de um conteúdo preconceituoso.
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Quais os problemas do vídeo?
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Todos! O vídeo conseguiu reunir um grande conjunto de mitos e equívocos sobre a doença. O personagem central volta de uma viagem maltrapilho, com uma lesão na pele e com uma perna amputada e anuncia para a família que pegou “lepra” e que por isso não pode ser encostado. Quem já teve hanseníase sabe bem o tamanho da violência quando as pessoas acreditam que você não pode ser tocado, o que não tem nenhum respaldo científico e que, num passado recente, sustentou uma política de isolamento de pessoas com a doença que retirou delas todos os seus direitos humanos e sociais. Além disso, o vídeo tenta fazer graça com sequelas graves e que são totalmente evitáveis, ridicularizando a dor de quem teve seu direito à saúde negado por instituições despreparadas para o diagnóstico oportuno da doença.
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Qual a verdade sobre a hanseníase?
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Ao contatarmos a assessoria do Porta dos Fundos, fizemos os seguintes esclarecimentos (que não sensibilizaram o grupo):
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1) 1) As pessoas comumente fazem a associação entre o termo “lepra” e a hanseníase. Por conta de toda a carga de estigma associada ao termo, inclusive, o Brasil proibiu, em lei 9.010 de 1995, a utilização da palavra “lepra” e derivados como sinônimo da doença. Um vídeo que utiliza o termo em associação direta a uma doença com marcas na pele e outras sequelas contribui para essa confusão.
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2) 2) Ao contrário do que dita o senso comum, a hanseníase não é de fácil de transmissão e seus sinais também não se apresentam rapidamente, pelo contrário: depende de longo convívio e se manifesta aos poucos até se tornar crônica.
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3) 3) Assim que iniciado o tratamento, inclusive, a doença deixa de ser transmissível.
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4) 4) Trata-se de uma doença que tem cura e, quando diagnosticada oportunamente, não deixa marcas ou sequelas.
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5) 5) Os casos em que o diagnóstico é tardio e causa sequelas são um tema muito sensível justamente por conta do estigma em torno da doença: acompanhamos denúncias de gente que perde o emprego, é socialmente isolada e sofre maus tratos até em serviços de saúde. Nada disso se justifica com a informação correta sobre como a doença e o tratamento funcionam.
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6) 6) Por muito tempo, a política pública relativa à hanseníase no país se ancorou no medo que a doença causa nas pessoas e uma das nossas bandeiras é substituir essa política do medo ultrapassada por uma política de informação, cidadania e solidariedade.
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7) 7) Apesar do Brasil registrar anualmente quase 30 mil casos novos da doença, que o coloca como o país com a maior incidência (casos em relação à população) em todo o mundo, a hanseníase é uma doença considerada midiaticamente negligenciada, ou seja: é invisível no debate público. Muito nos entristece que quando o tema tenha alguma oportunidade midiática seja para reforçar estereótipos etigmatizantes.
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O que o Morhan vai fazer a respeito?
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Diante disso, anunciamos que o Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan), acionou a Defensoria Pública da União por meio de denúncia junto ao Observatório Nacional de Direitos Humanos e Hanseníase. Sem nenhum sinal de reparação por parte do grupo Porta dos Fundos, também buscaremos a via judicial, entendendo que a reprodução consciente do estigma é uma questão para a Justiça.